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Sphere on Spiral Stairs

COISAS GUARDADAS PRA TE DAR  - Luiz Carlos da Vila inédito

Por Hugo Sukman

 

Coisas guardadas pra te dar - Luiz Carlos da Vila inédito. O título diz tudo e veio fácil a este escriba, enquanto observava, encantado, o passo a passo das gravações de cada uma das 12 “coisas guardadas”, as 12 canções inéditas que compõem o álbum. De fato, é como se Luiz Carlos da Vila tivesse guardado estas canções por 16 anos, para nos dar. E deixou isso avisado, como uma herança mesmo, nos versos de uma dessas canções, justamente uma, “Eterna alegoria”, de sua prolífica e querida parceria com Cláudio Jorge, que teve a ideia deste álbum: “Ah, são tantas coisas que estou guardando pra te dar/Lágrimas tão cheias de saudades”.

“Coisas guardadas para te dar” é o álbum que Augusto Martins e Cláudio Jorge fizeram do baú de canções inéditas deixadas por Luiz Carlos da Vila, que morreu em 2008 no auge de uma evolução criativa: genial sambista, como todos sabem, autor de todo o tipo de samba, do terreiro ao enredo, o grande poeta da Geração Cacique de Ramos, ele estava dividindo cada vez mais sua criatividade com outros gêneros de canção, aproximando-se do que se convencionou chamar - só para facilitar a compreensão - de MPB. O repertório do álbum reflete exatamente isso: há sambas de diversos tipos - do samba-enredo “Festa da Penha”, passando por partido alto (“Pagode de mesa”), samba de quadra (“Sem meio, sem fim”) e de "meio de ano” (“Certeza”), muito samba clássico (“Outras bandas”, “Pipa voada”, “Eterna alegoria”); mas também há uma valsa (“Eu vim para te amar”), sambas “MPB" como “A regra do jogo” e “Agnus Dei”, choro canção (“A dona”) e até uma canção propriamente dita, “No meio da ponte”, indicando para onde estava indo a criatividade de Luiz Carlos da Vila se não tivesse nos deixado precocemente aos 59 anos. Estas canções são uma herança no sentido exato do termo: guardadas dezenas delas com zelo pela filha, Maiana, e pela mulher de Luiz Carlos, Jane, elas foram franqueadas a Augusto Martins e Cláudio Jorge, de muitas formas também herdeiros, que garimparam as 12 que afinal seriam gravadas.

Augusto é herdeiro de pelo menos “Outras bandas”, que abre o álbum, enviada a ele em 2007 pelo próprio Luiz Carlos da Vila, com seu violão e voz, e um recado gravado, tudo devidamente registrado aqui: “Augusto Martins, espero que essa música entre no disco. Vou ficar feliz... e minha mãe também”. Agora, finalmente, Dona Esmerilda tem motivo para ficar feliz... Cláudio Jorge é herdeiro natural, parceiro-irmão, juntos eles fizeram o álbum “Matrizes” e um punhado de lindas canções, como a significativa “Parceiros e amigos” e a obra-prima “Princípio do infinito” - entre as inéditas há duas da dupla, dois clássicos, o samba “Eterna alegoria” (de onde saiu o título do álbum) e a valsa “Eu vim pra te amar”, cantada e celebrada pelos amigos desde que foi composta em 2007 e que finalmente ganha sua primeira gravação. Cantor e ritmista - sobretudo no pandeiro que bate com classe - Augusto Martins e Claudio Jorge - maior violão do samba, guitarrista, compositor e cantor - fazem tudo no álbum, cantam e tocam todos os instrumentos. Única exceção é a participação do gaitista Israel Meirelles, presente em vários discos de Augusto, num lindo improviso à Mauricio Einhorn em “A regra do jogo”. Augusto Martins e Cláudio Jorge formam, há quase dez anos, uma dupla típica da música brasileira, na linha de um Francisco Alves e Mario Reis, alternando uníssonos e vozes solos em um repertório baseado no samba. Juntos, gravaram em 2015 um álbum dedicado à obra de Ismael Silva. Decidiram se dedicar, como dupla, a obras de compositores cariocas, donde chegaram naturalmente a Luiz Carlos da Vila. Mesmo cientes da beleza e da importância cultural do repertório que escolheram, quando começaram a gravar mesmo, Augusto e Cláudio Jorge ainda não tinham a dimensão do tamanho da coisa. As sessões de gravação no Estúdio Vale da Tijuca - com vista privilegiada para a Zona Norte do Rio, habitat natural do compositor e de seus intérpretes - foram naturalmente intimistas, somente os dois, o técnico de gravação e mixagem Lourival Franco, e quase sempre este que vos escreve. Cada faixa, posso assegurar, gerou mesmo em nós, seus maiores admiradores, um espanto com o nível que Luiz Carlos da Vila atingiu como letrista, do padrão dos maiores poetas da canção. Como mais ou menos digo entre os versos do partido “Pagode de mesa”, quando o projeto começou não sabíamos ainda se nosso amigo Luiz Carlos da Vila era assim um Aldir, um Chico, um Nei Lopes, um Paulinho Pinheiro. Ao final das gravações, emocionados, chegamos à conclusão que sim, é. Ouso dizer, inclusive, que este não é um disco normal, de intérpretes fazendo a obra de um compositor. Augusto e Cláudio Jorge são tão íntimos desse repertório que é como se eles fossem o “cavalo” de Luiz Carlos da Vila. “Coisas guardadas pra te dar” é, na verdade, um álbum de Luiz Carlos da Vila, o que ele provavelmente faria se estivesse por aqui, com seus “novos parceiros” de 2007, 2008. Em outras palavras, um acontecimento da música brasileira. Porque viu, e se emocionou, Hugo Sukman escreveu estas linhas.

 

As inéditas de Luiz Carlos da Vila.

1) Outras bandas (Luiz Carlos da Vila) - O compositor mandou-a numa fita para Augusto Martins, em 2007, que preparava o disco "No meio da banda". Como não era um disco de samba, acabou não entrando. É um samba clássico, de malandro, letra esperta, melodia “sincopada”, um LCV típico. Abre o disco como ele ambiciona ser: um disco de Luiz Carlos da Vila, que “participa” com sua voz e seu violão rouco, de sambista compositor, retirado da fita de 2007 e manipulado com ajuda da inteligência artificial. Cláudio Jorge acrescenta seu violão, base e solo, a partir do jeito de Luiz Carlos tocar, e Augusto faz o pandeiro. Os três cantam juntos, que é o que de fato está acontecendo aqui. Milagres da tecnologia. Ah, e com um detalhe: desconfiado dos limites do seu violão, Luiz Carlos diz na gravação original: “Depois acerta no arranjo”. E como acertou...

2)  Eterna alegoria (Cláudio Jorge/Luiz Carlos da Vila) - Da vasta parceria dos dois, levado só no pandeiro e violão (fuderoso, o suingue bem de Claudio Jorge, uma aula de seu estilo). Trata- se de um samba clássico na linha de Noel, Ismael, Augusto e Cláudio cantando como dupla, refrão, segunda parte, um samba curto, e de letra simples, que dá o conceito de forma direta, “um poema inteiro/Claro como a luz do teu olhar”. Letra típica de Luiz Carlos, defende a eternidade do amor mesmo depois que o poeta vacila, ele merece perdão: “Conheci as benesses de amores/Me fizeram entender que um grande amor/Tem sim erros/Mas nunca chega no final/A base de uma alegoria não serve apenas pra um Carnaval ”.

3) No meio da ponte (Celso Viáfora/Luiz Carlos da Vila) - A guitarra elétrica à Joe Pass de Cláudio Jorge, que vira samba na segunda parte, emoldura a canção que talvez seja a obra- prima do disco. O samba inovador de Celso Viáfora inspirou em Luiz Carlos sua letra talvez mais sofisticada, imagens poéticas inusitadas, que beiram a abstração. “Se eu só quis foi correr livremente/Antes que um sinal de repente/Sem ter cor ou razão aparente/Me fizesse parar”, diz um dos versos, indicando o caminho que, aos 59 anos, o maduro Luiz Carlos da Vila tinha pela frente, a sofisticação dentro do samba, reforçado pelo tamborim de Cláudio Jorge e o ganzá de Augusto em contraponto à guitarra de jazz. Os versos secos e desesperados - “Eu parei e não tinha sinal/E aí, o que houve afinal?/Por que estou estancado no meio da ponte?” - dá lugar ao conforto da sentimental decisão final, “Sinal sem ter sinal/ Bateu no coração/Pelo sim pelo não volto pro meu amor”, pura síntese de Luiz Carlos da Vila.

4) Pipa voada (Moacyr Luz/Luiz Carlos da Vila) - Samba carioquíssimo, mas composto em Amsterdã, onde os parceiros foram fazer um show também em 2007. Como dizia Vinicius, fora do Brasil dá vontade de fazer sambas mais telúricos, "são, como diria o Lucio Rangel, as raízes". É papo de pipa, gíria, suburbano total. Se Tom Jobim fez “Two kites”, a metáfora de duas pipas voando no céu da Zona Sul ou de Nova York representando o início idílico de um amor, Moacyr Luz e Luiz Carlos da Vila ambientam suas duas pipas na Zona Norte e retratando talvez o fim de um amor (“E se não tem jeito mesmo é cerol então/Tem a pipa que ser cortada”). É uma das poucas letras de Luiz Carlos que admite o fim de um amor - em quase todas as outras ele abre espaço para uma volta, uma esperança. Suburbano como o samba, violão e tamborim são de Cláudio Jorge, pandeiro de Augusto. E só. Como duas pipas no céu do subúrbio.

5) A dona (Silvério Pontes/Alessandro Cardozo/Luiz Carlos da Vila) - Os compositores entregaram este choro canção a Luiz Carlos, pouco antes do compositor morrer. É música de gente grande, não fosse Silvério Pontes um grande do choro e do trompete, que emula em suas performances os contrapontos de Pixinguinha, e Alessandro Cardozo uma das maiores revelações daquele momento, hoje confirmado como um dos maiores cavaquinhos do samba, na banda de Zeca Pagodinho entre outros trabalhos notáveis de arranjo e produção. Choro canção clássico na onda de um de Claudionor Cruz e Pedro Caetano, a primeira parte é levada pelos cantores quase sem ritmo, ad libtum, como canção, e vira choro explícito na segunda vez. O resultado, com a letra de Luiz Carlos da Vila exaltando a mulher amada, é uma obra-prima: “É a musa seja ela de verdade ou manequim/É deusa no palácio ou botequim”. O mais emocionante é que os parceiros achavam, até este ano, que não havia dado tempo, a letra não existia. Augusto e Cláudio Jorge a acharam no baú. Silvério e Alessandro quando receberam aquele pedaço de papel e constatarem que a letra cabia perfeitamente na música ficaram muito emocionados, como nós agora quando a ouvimos nas vozes de Augusto Martins (e seu pandeiro) e Claudio Jorge, no violão.

6) A regra do jogo (Miltinho/Sergio Farias/Luiz Carlos da Vila) - Claudio Jorge canta só nesta faixa, acompanhando-se de guitarra elétrica, afinal, trata-se quase de um “Samba jazz de raiz” (para citar o seu disco que ganhou o Grammy Latino). Completam a faixa o pandeiro e o caxixi de Augusto, o tamborim de Cláudio Jorge e a gaita de Israel Meirelles. A onda dessa faixa, com influência de samba jazz na levada e nas harmonias da guitarra praticamente exigiram um instrumento solista, como uma gaita que lembrasse um Mauricio Einhorn. Samba da MPB, não fosse Miltinho um vocalista (e o principal compositor) do MPB-4. Letra esperta, típica de Luiz Carlos da Vila com suas imagens inusitadas, é uma list song que Cole Porter e Chico Buarque assinariam tranquilamente. Luiz Carlos estava, em seus últimos anos, esmerando-se cada vez mais nesse tipo de composição sofisticada, explícita logo no primeiro verso: “Eu fiz pra você um bolero, um samba e um blues...”.

7) Agnus Dei (Celso Viáfora/Luiz Carlos da Vila) - Desta vez é Augusto que canta só, acompanhando-se ao pandeiro e com o violão de samba de Cláudio Jorge. A letra cortante é de Luiz Carlos da Vila, mas bem que poderia ser do seu parceiro Celso Viáfora, aqui autor apenas da melodia. Muito sofisticada, é uma exaltação ao amor, a canção mais literária do disco, um aperfeiçoamento do estilo de Luiz Carlos, elevando ao máximo suas definições do amor; poesia mesmo. Bandeira e Drummond, não sei não, se vivo fossem vibrariam como vibraram antes com Orestes Barbosa e Chico Buarque. Ouçam, apenas ouçam, porque como diz um dos versos do samba, "Filosofar no amor é blá-blá-blá".

8) Eu vim pra te amar (Claudio Jorge/Luiz Carlos da Vila) - Uma valsa - como tantas do cancioneiro brasileiro - foi feita, ou ao menos finalizada, no meio do rebuliço de uma festinha de aniversário na casa do compositor Agrião, parceiro de ambos, à vista deste escriba e dos demais convidados. É Luiz Carlos da Vila viajando por outros gêneros, que não o samba, coisa que ele sempre fez mas que não tinha tanta visibilidade. A valsa clássica de Cláudio Jorge suscita no letrista referências espertas ao gênero, tanto brasileiras - “Lábios que beijei/ E mãos que eu afaguei/Palavra de rei volto atrás” - como universais: “Valsa de Strauss, estresse é o fim/Vida: vidas a bailar”. E é veículo para seus versos hiperbólicos e surpreendentes: “Versos já cantei/Pro mar bravio acalmar/Numa paz querubim/Pro Vesúvio amansar/E desanuviar/Luar no cais, enfim”.

9) Sem meio, sem fim (Wanderley Monteiro/Luiz Carlos da Vila) - Compositor da Unidos de Vila Isabel, afilhada da Portela, é como se Luiz Carlos da Vila pagasse um tributo à Escola madrinha: o que temos aqui é um samba de quadra da Portela. Muito provavelmente por culpa de seu parceiro neste samba, Wanderley Monteiro, compositor da azul e branco de Madureira. O coro de Augusto e Claudio Jorge, meio Velha Guarda na introdução, apenas reforça isso. Assim como o violão de Claudio Jorge (que por muitos anos foi o violão da Vila) e o pandeiro de Augusto. Os versos com metáforas da natureza - "O cantar de um colibri/A paz de uma borboleta/A cor mais linda que eu já vi/Brilho maior deste planeta” - poderiam ser assinados por Manacéia. Como no samba clássico de Monarco, que se refere a “esse avante”, Luiz Carlos apresenta versos como “Abençoado e que venha logo esse início/ Vejo nele vitalício tempo bom/Vida melhor”. Pura Portela. Só que Da Vila.

10) Certeza (Luiz Carlos Máximo/Luiz Carlos da Vila) - Trata-se de um delicioso samba de meio de ano da Vila da Penha, bairro no qual os dois Luiz Carlos, Máximo e da Vila, eram vizinhos. Levado só no pandeiro e violão, e nas vozes dos dois cantores em uníssono, é tão clássico que lembra um samba da antiga, de um Ismael Silva. A bela melodia de Máximo emoldura uma letra típica de Luiz Carlos da Vila, que agora trata da eterna permanência do amor, em versos hiperbólicos tão comuns na obra do autor de “O show tem que continuar”: “Podem destruir toda a cidade/Podem até dizer que já findou a felicidade/Podem acabar com o sorriso e a alegria/Desluzir a noite e apagar a luz do dia/Mas uma certeza terá/Meu amor por você vai perdurar”. Dois compositores de escola de samba, Máximo e da Vila dedicam-se aí ao meio de ano, ao samba de quadra.

11) Festa da Penha (Luiz Carlos da Vila) - Autor de alguns sambas enredo antológicos, como “Kizomba - Festa da raça”, faz desta “Festa da Penha”, evento clássico de seu bairro, um samba enredo clássico, feito para o concurso da Festa da Penha e nunca antes gravado. Representa uma faceta importante de sua obra, que é o samba enredo histórico, no seu caso autobiográfico e metalinguístico. Violão, ganzá, tamborim, pandeiro de nylon (o único do disco, os outros são de couro) dão o clima de Avenida, mas uma Avenida intimista. Esperto, o samba começa citando em letra e melodia o clássico samba enredo “Festa do Círio de Nazaré" (“No mês de outubro/Juro que eu vou parar/E fazer meu ponto na Festa da Penha”), que a Estácio desfilou em 1975 e que falava de outra festa popular brasileira que ocorre em outubro. Refinamento de um mestre do gênero que em poucos e certeiros versos conta a história e descreve a festa de sua cidade e de seu povo, missão precípua de um samba enredo.

12) Pagode de mesa (Luiz Carlos da Vila) - Partido alto feito para Beth Carvalho, que gravou um disco homônimo e, sabe lá Deus por quê, acabou não entrando no disco. É, com perdão da redundância, uma obra-prima do gênero. É uma espécie de pagode erudito, que cita mesas históricas, como a Távola Redonda do Rei Arthur e a que recebeu a Santa Ceia de Jesus e seus apóstolos. E se os versos são geniais, referindo-se por exemplo a “antes mesmo do galo cantar”, o momento em que Pedro negou Jesus, e, ainda citando o tal galo, diz que o Rei Arthur “deu uma de galo cantou e à mesa mandou um pagode de mesa”, o refrão é de uma sutileza tão própria dos grandes partidos: “O samba do seu Claudionor/Na Mesa do Imperador/É quem faz mais bonito o pagode da Vista Chinesa”, o pagode da Vista Chinesa com dois sentidos, a festa de samba que estava rolando ali e o estilo da construção, um pagode chinês que dá nome ao famoso monumento da Floresta da Tijuca. Coisa, sim, de um letrista de primeiro time, como disse, o time do Aldir, do Chico, do Nei e do Paulinho, ao mesmo tempo embalado por palmas, pandeiro, tamborim de um partideiro popular.

Hugo Sukman, julho de 2024.

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